segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Onze e meia

Tinha 14 anos quando o vira pela primeira vez. Estava a limpar as mesas da sala, onde as pessoas sentavam para fazer uma refeição antes de embarcar para Rio Branco. A casa do pai e da mãe era como um porto, onde encostavam os barcos que trazia e levava gente. Os pais sempre davam um jeito de fornecer algum alimento a quem chegava ou partia. Entrou na sala seguido de outros homens. Tinham sido contratados pelo governo para consertar a velha ponte de madeira sobre o garapé, para quem fazia o caminho por terra até chegar ao ramal principal.
O pai sentou-se à mesa com eles. Perguntava do trabalho, quanto tempo ia levar, se haveria outras obras naquelas bandas e ele respondia seriamente. Levantou os olhos e o olhar cruzou com o dela. Ela apertou o pano de limpar a mesa contra a barriga, baixou a cabeça e foi para a cozinha. O coração aos pulos.
Dali em diante, vez por outra, ela o via. No café, almoço ou jantar. Um dia, estranha alegria. O pai disse que ele a queria em casamento. Um amor sem sobressaltos. E namoraram. Marcaram o casamento, planejaram coisas, pensaram nomes dos filhos. Um amor e seus detalhes. Há alguns meses da data, a perda. Sem explicações, febres, delírios, cansaços. O pai dormiu e não acordou. Guardou luto por um ano. Ele entendeu. Casaram logo depois. Ela aos 16, ele aos 29. Um amor e as coisas desse mundo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Cinco da Tarde

As crianças já haviam jantado. Peixe frito com farofa e arroz. O mais novo, bolachas mergulhadas no café com leite. Ouviu o barulho do batelão a se aproximar do porto improvisado no barranco. As chuvas já haviam começado, o rio já tomava água novamente. As veias de Deus no mundo. O barulho cessou. É ele! virou-se para o mais velho: cuida dos teus irmãos, que vou ver se é o teu pai! Calçou as sandálias de couro que ele lhe dera no ano passado, pulou para o terreiro e dirigiu-se depressa para o barranco. Chegou a tempo de vê-lo desembarcar as ultimas caixas. Desceu para ajudar a trazer as coisas que pudesse. Um abraço desajeitado, um beijo no rosto e outro na testa.
- Como vão as coisas?
- Tá tudo como Deus manda.
- Então tá bem.
No chão, uma saca de açúcar, uma de feijão, uma de arroz. Caixas de leite, café, jabá, bolachas, velas, fósforos, sal, alhos, pimenta-do-reino, algumas cobertas embrulhadas em plástico, dentro de sacolas.
Levaram as coisas com a ajuda do barqueiro. Ainda haviam pessoas para deixar ao longo do rio. Deu uns trocos para pagar a passagem e se despediu. No terreiro, as crianças o cercavam. Um beijo na testa em cada um. Tirou do paneiro dois pacotes. Dois carrinhos de plástico colorido, duas bonecas em miniatura. Risos e alegrias.
Outro pacote, em papel pardo rosa. Estendeu para ela. Curiosa, rasgou o papel… um corte de linho e linhas na cor do tecido. Sorriu, satisfeita. Subiram para casa, ela acendeu as lamparinas, porque a noite já se achegava. Aqueceu a comida e fez um prato para ele. Serviu café para os dois e tomaram, entre silêncios e afetos. A vida voltando ao normal.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Andante

A procissão seguia pela avenida. Tanta gente, a passo e compasso, tanta gente. Há coisas estranhas, numa procissão. A mulher que leva as crianças vestidas de anjinhos, o homem que vai de joelhos, a menina com o tijolo na cabeça… atravessados de agradecimento e temores e esperas. Ela ia à procissão, levando os quatro filhos. Em honra de Nossa Senhora. Olhou em volta, com amor e pena. Da mesma gente gado, num lento caminhar entre sombras e luzes e risos e choros. Cada um sabe o que arrasta por dentro. Da mesma manada somos. A procissão fazia isso por ela, ajudava a sentir que era de alguém. Uma manada e seu pastor. Ali, se despreocupava do mundo e suas agonias, porque Outro tomava conta. Podia só andar, andar e andar. Aprendera o terço muito cedo e o rezava todos os dias dos santos. Repetir era um jeito de não esquecer. Tirou a água da sacola que levava ao lado e deu aos filhos e ao marido. Tomou um gole e guardou a garrafa. …no céu, no céu, com minha mãe estarei…Tinha fé e assim era. Mas tinha medo de morrer. Queria um céu sem morte. Ver o pai, o irmão que cedo se foi, os avós. O que a gente vem fazer nesse mundo? Olhar a morte nos olhos…e sobreviver, humanamente, ao seu medo. A visão real de si mesmo no segundo definitivo. Segurou mais forte a mão do filho mais velho, aconchegou mais o pequeno ao colo. No silêncio, os mistérios dolorosos.