sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A flor

Veja margarida,

Tudo começou do nada absoluto,

A ausência de coisa sólida.

Só o sentimento nadando nestas águas.

Eram dois, depois 11, depois 22

E quantos mais virão.

Veja margarida,

Eu nem sei por onde terminar.

Saudade tua

E de não saber se.

Uma que já veio, outro que virá.

Todos são tu, o milagre da multiplicação.

Tantos quanto os grãos de poeira de tuas mãos.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Madrugada

Uma noite, tivera um sonho e acordou abestalhada.

A canoa virou, levando toda a farinha a misturar com a água

amarela do rio, o saco de roupas, a trouxa com lata de farofa,

as bananas. E a criança, não havia a criança.

Acordou entre gritos, desespero, dor moída.

Somente o saco plástico com os documentos, conseguiu agarrar.

Voltava para casa, muda e triste, como as árvores dos barrancos prestes

a virarem balseiro, a espera da próxima enchente.

Acordou assim. Olhou ao lado, a rede vazia a balançar.

Levantou, calçou as botas sete léguas, pegou o

saco de estopa e foi para o barranco apanhar o feijão.

Com sorte, talvez uns ovos de tracajá.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O que já não é.

Há coisas que vão morrendo

Diante de nossos olhos

Sem que possamos salvá-las.

Há coisas que se partem,

Há coisas que partem.

Há coisas que vão-se lentamente,

Sem quê, sem como,

Há coisas que perdem a cor, sabor, aroma.

Há coisas que perdem a nós,

Há coisas que nós perdemos.

Há coisas que eram e já não são.

Há outras que nunca serão.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Um cão sem dono

Largado ali, uivava entre pedras e sal.
Estava nu, como no dia em que
nascera, mas com toda
a vergonha possível a
lhe assombrar a forma estranha
e concreta, a frieza do mundo.
Não havia sombra que lhe abrigasse,
não havia água para sua sede,
não havia caminho sequer.
Sentou sobre o próprio tumulto.
Olhou para o céu. Sem resposta.


domingo, 15 de agosto de 2010

Conspurcado

A lágrima seca

Tornou-se areia.

Um deserto crescia em espiral

E movia-se conforme

Lhe doía tudo aquilo

Tudo junto

Sem nome.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A boa nova

O que não compreendo, me comove.

Tudo que me busca

Todos os dias

Nos cantos mais escuros,

Tudo que vai a escuridão

Por minha causa,

Tudo que mergulha na lama

Por amor a mim,

Que se atira,

Que mergulha,

Tudo que me toma do medo

De existir,

Me comove.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A ida

O homem deitado em sua caixa de madeira
ressonava o sono tranquilo dos que já
nao temem.
Seu último medo, foi partir.
A mulher não vestiu panos de saco, nem
jogou cinzas à cabeça. Apenas a criança,
em seu ombro, acompanhava o seu lamento.

(Para L, nesses dias escuros)

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Quita

A mulher cor de rosa, de poucas rosas ornada,
ficou cinza. Não era rosa a sua vida, nem rosada a
sua triste sina.
Há três dias, a velha senhora, a vizinha das plantas,
morreu. Os gatos sumiram. A a roupa estendida no varal
permanece, bandeirolas ao vento. Não há fumaça
na chaminé, nem cheiros de sardinhas assadas.
Só o silêncio grita de sua boca intemporal.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Retorno

Um dia, nos encontraremos todos.
Todos os que partiram,
todos os que ficaram,
todos em transição.
Um dia,
Falaremos do que não deu tempo,
não será tarde demais,
não haverá correrias,
nem espantos.
Pediremos desculpas,
e retornaremos
naquele instante, quando em crianças,
pulamos da árvore achando que íamos voar.
E voaremos!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Afago

Os fantasmas entram pela porta,
sobem as escadas
e gentilmente, perguntam
se podem sentar.
Eu lhes sirvo um café e um sorriso fraco.
Perguntam-me como tenho passado,
o que tenho feito de novo,
se sou feliz.
Contam-me o que teriam feito se
eu fossem,
falam-me de seus feitos, fardos
e memórias.
Quando já sem assunto, dão
tapinhas na mesa, sorriem e despedem-se.
Quando puderem, voltam.

(Para Vê)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Intervalo

Ao meio-dia,
o almoço de parca composição,
simples como devem ser
as coisas espremidas entre
horas poucas.
Se não houvessem horas, era como
se vivêssemos na eternidade?
Um tempo sem contagem e
sem pressas,
à beira do fim constantemente...
As horas foram criadas,
tão longinquamente,
para que eu saiba o tempo que nos resta
entre o café e o bater do ponto,
simplesmente.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Meia Noite

Era uma pessoa só.
Só por dentro, solitária em si
Era escuro.
O futuro, tudo, tudo,
a caminhar para o incerto,
o desconhecido, o inanimado.
Nada de alegrias furtivas,
nada de pequenos segredos,
nada de sorrisos medianos.
Nada havia que.
Nada havia como.
Nada havia se.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Dez horas

O Rio Acre estava cheio e caía uma chuva fina. Ela pôs um lenço na cabeça e uma toalha nas costas e sentou um tanto encolhida sobre os joelhos. Tinha seis anos. Os barrancos passavam lentamente, ao som da batida monótona do velho motor do batelão. Bate assim o coração do rio. O tio ia à atrás, manejando o longo cabo que orientava o barco naquele caminho corrente, a desviar dos balseiros que se avizinhavam. Era perigoso, se o barco batesse em algum, podia virar. Os peixes pululavam aqui e ali. E um saltou dentro do barco, bem perto dela. - Cuidado, é um peixe cachorra, se te pega o dedo!… Tinha uns dentes compridos e finos. Arrepiou-se ao pensar na mordida daquilo. Já tinha levado uma mordida de candirú e não era nada agradável. O tio prendeu o cabo com uma corda fina e foi até lá, pegou o peixe, jogou de volta à água e retornou ao motor… Ia para a casa da avó, passar as férias da escola. O coração cheio daquilo que via, barrancos e árvores que acenavam à sua passagem e aquele rio de águas confusas e seus remoinhos. Tremia de frio. À noite é mais. Esperava não ter que dormir numa rede. – Vam’bora neguinha, tamo chegando!... Fez uma curva grande e aproximou o batelão da margem. Olhou para cima e viu os irmãos descalços a deslizar o barranco abaixo, para ajudar com as mercadorias que o tio trazia. Sorriu. A casa da avó, duas vezes a casa da mãe. Esperou o tio espetar o cabo de ferro com a corda do barco à margem, pegou na mão estendida e saltou para a terra, com uma sacola na mão. Subiu o barranco com dificuldade, correu para a escada saltando os degraus com pressa. De um pulo, pendurou-se na grande balança que havia na parede da sala. Não entendia nada daqueles ponteiros, era só para vê-los mexer. Foi para o quarto da avó, tomou-lhe a bênção e deu-lhe um beijo no rosto e na mão.
- Deus te dê saúde.. Fez boa viagem?
- Sim… Largou a sacola do lado da cama.
- E tua mãe e teu pai, tão bem?
- Sim, tão tudo bem…
Foi até a cozinha. Subiu num banquinho, para poder olhar pelo jirau. Em baixo, o pé de limas e os pupuaçus. Atrás, a floresta toda a balançar. Obrigada.