A madrugada já ia alta e ela ainda não dormira. Mesmo que dormisse, o sono era tão ausente que acordava ao menor ruído do vento nas frestas da casa. Sentada na cama de frente para a porta, o rifle atravessado sobre as pernas. Olhou as crianças. Dessa vez, nenhum estava nas redes. Juntara as duas camas de casal e todos dormiam ali, ao seu lado. Pela janela do jirau, vira o cruzeiro do sul mudar de lado e as três marias. Algo arrastou-se no canto da casa. Apurou o ouvido, mas o barulho não se repetiu, então voltou a fechar os olhos. Tinha boa pontaria. O rifle era para elas. Elas é que eram atrevidas, a roubar galinhas e porcos quando bem lhes apetecia. Elas e seus rugidos roucos, ecoando da mata até sua porta. Tudo o que segurava a porta era uma tramela feita com um velho pedaço de madeira e pregos. O jirau não tinha janela. E segurou com mais força o cabo do rifle. As minhas crias não levam. Estava disposta a defender a ordem natural do seu mundo. Levantou da cama com o rifle seguro sob o braço, foi até ao jirau e olhou o terreiro. Somente sombras desvanecidas, no azulado que a lua deixava na terra. Grilos, cigarras, sapos. Longe, um animal qualquer se debatia no rio. O que é vida para uns, morte é para outros...
Uma sombra cruza o terreiro. Fez mira. Se viesse para a casa, atiraria. A sombra parou. No escuro, seu tom amarelado pouco se via e as pintas sumiram. Olhou-a pela mira. Tu tens tuas crias, eu tenho as minhas…vai adiante… os olhos, duas bolas azuis na escuridão. Voltou-se, seguiu caminho e entrou na mata. Melhor assim, ganhamos as duas. O corpo a tremer. Voltou para a cama e sentou-se, as costas apoiadas na parede. Pôs o rifle novamente sobre as pernas e fechou os olhos.
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Sete horas
Acordou de um salto. Lavou o rosto no jirau, penteou o cabelo cacheado e amarrou todo num rabo de cavalo. A mãe acabara de preparar o pão de milho e deixara um pedaço, junto com um pouco de leite de castanha, num prato de esmalte. Iria comer depressa porque ele já devia estar voltando da estrada de seringa. Sentou-se no chão, o prato entre as pernas pequeninas. À porta, o cachorro enrodilhado, também esperava. Calçou as sandálias de couro. Ela e o cachorro a fazer a espera fiel. Tinha cinco anos. Os irmãos, alguns tinham ido com ele para o corte. Outros, começaram cedo na casa de farinha. A mãe estava na cozinha, a sangrar um pato.
De longe, ela o viu, o chapéu, as botinas, a sacola a tira-colo. Entregou tudo aos filhos mais velhos e avançou para porta da cozinha, que fazia ligação independente com o terreiro. Pegou-a, rodou por debaixo de um braço para o outro e a pôs no chão novamente.
Ele entrou, comeu o pão de milho com ovos fritos, uma caneca de café. Levantou, desceu as escadas e disse: vam'bora curica! Ela, de um salto, desceu ao mundo. Era costume o pai leva-la até o rio para ver o que o espinhal havia pego. Matrinchãs, mandis, traíras, pacus, de tudo um pouco. O cachorro também entendeu o chamado e ergueu-se como se nunca sono algum. E ganiu. O pai parou de repente. Olhou o cachorro, os quartos arreados ao chão. Ladrou novamente, as orelhas caídas, olhar medroso. Enrolou-se aos pés do pai. Ela não entendeu, olhou para o pai, medo do que não via, pena do que via. Não te mexe, curica, fica quieta... Ela, o pai e a paralisia da espera, a olhar o cachorro apanhar e gemer e ganir e a urinar no pó. Mau caçador, a pagar suas penas. As coisas da mata, as vezes saem dos conhecidos quintais. Entendeu: Caboclinhos!
De longe, ela o viu, o chapéu, as botinas, a sacola a tira-colo. Entregou tudo aos filhos mais velhos e avançou para porta da cozinha, que fazia ligação independente com o terreiro. Pegou-a, rodou por debaixo de um braço para o outro e a pôs no chão novamente.
Ele entrou, comeu o pão de milho com ovos fritos, uma caneca de café. Levantou, desceu as escadas e disse: vam'bora curica! Ela, de um salto, desceu ao mundo. Era costume o pai leva-la até o rio para ver o que o espinhal havia pego. Matrinchãs, mandis, traíras, pacus, de tudo um pouco. O cachorro também entendeu o chamado e ergueu-se como se nunca sono algum. E ganiu. O pai parou de repente. Olhou o cachorro, os quartos arreados ao chão. Ladrou novamente, as orelhas caídas, olhar medroso. Enrolou-se aos pés do pai. Ela não entendeu, olhou para o pai, medo do que não via, pena do que via. Não te mexe, curica, fica quieta... Ela, o pai e a paralisia da espera, a olhar o cachorro apanhar e gemer e ganir e a urinar no pó. Mau caçador, a pagar suas penas. As coisas da mata, as vezes saem dos conhecidos quintais. Entendeu: Caboclinhos!
Uma da tarde
Tentava descansar e não sabia como. Virou sobre si, como que a espera de se surpreender. Silêncio e vento nas palhas que cobrem a casa. Os meninos brincam no terreiro, aproveitando que é verão. Já o roçado estava posto, a espera das chuvas, as galinhas e seus ovos, a espera da lua certa. Mais de duzentas, vingaram de um casalinho de pintos que a dona do seringal não quis. Tem gôgo, não vão sobreviver, disse ela. Eu que sei, que na mão de quem precisa, o inesperado se faz. O galo canta às duas da tarde. Desconhecia coisa mais triste do que o canto do galo no começo da tarde. Parecia lembrar a agonia, a rejeição, a solidão do sofrido corpo. Não se afastem pra beira da mata, cuidado com as cobras! O terreno em volta da casa era tão limpo que havia uma faixa circular, com a casa de palha ao centro, em que se via a terra e seu pó branco. Para ver coisas rastejantes ou andantes estranhas. O que não se via, normalmente era alardeado pelo terror das galinhas todas a cacarejar ao mesmo tempo, como quando anunciaram a pico-de-jaca enrolado sob o esteio da casa. A vida cresce, entre árvores grandes e pequenas, o viver de gente tentando ultrapassar aquilo tudo. A mata encantada. É preciso respeitar sua não humana gente. Cantos, olhos, luzes, ali tudo. Coisas que não se vêem, coisas que se transformam, coisas a cumprir sua existência milenar, bem ali. Ela só queria cumprir a sua. Longe, o som de um pequeno batelão força passagem nos bancos de areia do rio quase sem água. Vão precisar de um varejão. Adormeceu.
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
Oito horas
Agachou-se junto à trouxa de roupa suja, amarrada com o velho lençol de cama. Desfez o nó, lentamente, o olhar perdido, a pensar coisinhas do dia que iniciava. Fazer o almoço cedo para os meninos comerem antes de ir à escola, costurar as meias do mais novo, dar milho às galinhas, por água para o cachorro. Examinava as peças uma a uma, como se examina velhas lembranças e se decide as que não nos servem mais. Roupa branca não se lava com roupa de cor. Não tenho água-sanitária. Calças, calções, camisas de cambraia surradas, toalhas, tudo passava diante dos olhos. O cheiro do feijão a cozer no velho fogareiro toma conta da casa. Lá adiante, depois do capinzal, o garapé da Judia. Lavou a vida de muita gente, o velho garapé. Lavou raivas e tristezas, baça solidão diluída em pequenas ondas na água.
Longe, o gado muge. Observa as paredes de paxiúba onde se escondem piolhos-de-cobra, aranhas e imbuás. Há que ter gente que medo tem. Ela não, nunca lhe fizeram mal. Nem às crianças. O marido andava pelas colónias, a trabalhar de meia, a sustentar duas famílias: a do dono da terra e o da terra sem dono.
Olha em volta, a roupa separada. Busca as bacias, duas, uma para por de molho e outra para fazer as trocas, a caixa de sabão, a escova amarela, o pau-de-bater (tem roupa mais suja que precisa), o sabão em barra, a cuia para tirar água, a velha buxa feita de um pedaço de sacola de nylon azul, que servia para esfregar as camisas de meia sem esticar. Pegou o lenço de amarrar na cabeça, para proteger do sol durante o caminho. O feijão estava quase pronto. Era só temperar com alho, sal e pimenta-do-reino, cheiro verde. Depois, juntar com a farofa de carne, por tudo numa lata de leite mococa. Estava pronta para passar a manhã no garapé.
Era Agosto, sol ardente. O capinzal deitado à vontade do vento. Tinha que atravessar o campo. O medo do gado bravo. Havia vacas recém-paridas, que, vez por outra, corriam atrás de invasores. Ela não podia correr, com a bacia de roupa na cabeça. A não ser que a largasse, mas aí, teria que pagar as roupas para o dono, então era melhor pedir a proteção de São Sebastião e ir à vida. Puxou o cordão pelo lado de fora da porta, enrolou no prego, desceu a escada e partiu.
Longe, o gado muge. Observa as paredes de paxiúba onde se escondem piolhos-de-cobra, aranhas e imbuás. Há que ter gente que medo tem. Ela não, nunca lhe fizeram mal. Nem às crianças. O marido andava pelas colónias, a trabalhar de meia, a sustentar duas famílias: a do dono da terra e o da terra sem dono.
Olha em volta, a roupa separada. Busca as bacias, duas, uma para por de molho e outra para fazer as trocas, a caixa de sabão, a escova amarela, o pau-de-bater (tem roupa mais suja que precisa), o sabão em barra, a cuia para tirar água, a velha buxa feita de um pedaço de sacola de nylon azul, que servia para esfregar as camisas de meia sem esticar. Pegou o lenço de amarrar na cabeça, para proteger do sol durante o caminho. O feijão estava quase pronto. Era só temperar com alho, sal e pimenta-do-reino, cheiro verde. Depois, juntar com a farofa de carne, por tudo numa lata de leite mococa. Estava pronta para passar a manhã no garapé.
Era Agosto, sol ardente. O capinzal deitado à vontade do vento. Tinha que atravessar o campo. O medo do gado bravo. Havia vacas recém-paridas, que, vez por outra, corriam atrás de invasores. Ela não podia correr, com a bacia de roupa na cabeça. A não ser que a largasse, mas aí, teria que pagar as roupas para o dono, então era melhor pedir a proteção de São Sebastião e ir à vida. Puxou o cordão pelo lado de fora da porta, enrolou no prego, desceu a escada e partiu.
Uma hora
Levanta da cama, suada. Teve um pesadelo, com água a invadir a canoa, a perder vidas, bananas e sacos de farinha. Não sabia nadar, o que era meio triste para quem viveu a vida toda guiada por rios e garapés e lagos. Tinha medo do que aquelas águas barrentas escondem. Foi até ao pote, pegou um caneco encheu com água e tomou lentamente, os olhos presos à luz da lamparina e seu fio negro.
Foi até aos meninos e olhou rede por rede, a fechar mosquiteiros e puxar lençóis. Olhou a cama das meninas. Dormiam todas, a vida calma entre lençóis de chita.
Pegou o terço, a bíblia e pôs-se a desfiar orações. Não tinha medo do escuro, nem de assombrações, tinha fé inabalável nos santos e na virgem. Lá fora, as rãs gemiam alto e o barulho dos grilos entravam pela janela a dentro.
Pensou no marido, longe. Um sonho daqueles não era bom presságio, o que podia ser?
Não houve missa em homenagem ao pai que já foi. Cinco anos. Este ano não acendeu velas. Passou em escuro, os anos de saudade. Ó meu pai, perdoa o meu bruto cansaço, e esse esquecimento. A noite é escura, mas é em claro o meu coração…
Encostou ao peito a folhinha com a imagem de Nossa Senhora das Dores, fechou os olhos e pensou que não havia de ser nada. Adormeceu assim, entre medos e esperanças.
Foi até aos meninos e olhou rede por rede, a fechar mosquiteiros e puxar lençóis. Olhou a cama das meninas. Dormiam todas, a vida calma entre lençóis de chita.
Pegou o terço, a bíblia e pôs-se a desfiar orações. Não tinha medo do escuro, nem de assombrações, tinha fé inabalável nos santos e na virgem. Lá fora, as rãs gemiam alto e o barulho dos grilos entravam pela janela a dentro.
Pensou no marido, longe. Um sonho daqueles não era bom presságio, o que podia ser?
Não houve missa em homenagem ao pai que já foi. Cinco anos. Este ano não acendeu velas. Passou em escuro, os anos de saudade. Ó meu pai, perdoa o meu bruto cansaço, e esse esquecimento. A noite é escura, mas é em claro o meu coração…
Encostou ao peito a folhinha com a imagem de Nossa Senhora das Dores, fechou os olhos e pensou que não havia de ser nada. Adormeceu assim, entre medos e esperanças.
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