segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Quatro horas

A madrugada já ia alta e ela ainda não dormira. Mesmo que dormisse, o sono era tão ausente que acordava ao menor ruído do vento nas frestas da casa. Sentada na cama de frente para a porta, o rifle atravessado sobre as pernas. Olhou as crianças. Dessa vez, nenhum estava nas redes. Juntara as duas camas de casal e todos dormiam ali, ao seu lado. Pela janela do jirau, vira o cruzeiro do sul mudar de lado e as três marias. Algo arrastou-se no canto da casa. Apurou o ouvido, mas o barulho não se repetiu, então voltou a fechar os olhos. Tinha boa pontaria. O rifle era para elas. Elas é que eram atrevidas, a roubar galinhas e porcos quando bem lhes apetecia. Elas e seus rugidos roucos, ecoando da mata até sua porta. Tudo o que segurava a porta era uma tramela feita com um velho pedaço de madeira e pregos. O jirau não tinha janela. E segurou com mais força o cabo do rifle. As minhas crias não levam. Estava disposta a defender a ordem natural do seu mundo. Levantou da cama com o rifle seguro sob o braço, foi até ao jirau e olhou o terreiro. Somente sombras desvanecidas, no azulado que a lua deixava na terra. Grilos, cigarras, sapos. Longe, um animal qualquer se debatia no rio. O que é vida para uns, morte é para outros...
Uma sombra cruza o terreiro. Fez mira. Se viesse para a casa, atiraria. A sombra parou. No escuro, seu tom amarelado pouco se via e as pintas sumiram. Olhou-a pela mira. Tu tens tuas crias, eu tenho as minhas…vai adiante… os olhos, duas bolas azuis na escuridão. Voltou-se, seguiu caminho e entrou na mata. Melhor assim, ganhamos as duas. O corpo a tremer. Voltou para a cama e sentou-se, as costas apoiadas na parede. Pôs o rifle novamente sobre as pernas e fechou os olhos.

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