quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Oito horas

Agachou-se junto à trouxa de roupa suja, amarrada com o velho lençol de cama. Desfez o nó, lentamente, o olhar perdido, a pensar coisinhas do dia que iniciava. Fazer o almoço cedo para os meninos comerem antes de ir à escola, costurar as meias do mais novo, dar milho às galinhas, por água para o cachorro. Examinava as peças uma a uma, como se examina velhas lembranças e se decide as que não nos servem mais. Roupa branca não se lava com roupa de cor. Não tenho água-sanitária. Calças, calções, camisas de cambraia surradas, toalhas, tudo passava diante dos olhos. O cheiro do feijão a cozer no velho fogareiro toma conta da casa. Lá adiante, depois do capinzal, o garapé da Judia. Lavou a vida de muita gente, o velho garapé. Lavou raivas e tristezas, baça solidão diluída em pequenas ondas na água.
Longe, o gado muge. Observa as paredes de paxiúba onde se escondem piolhos-de-cobra, aranhas e imbuás. Há que ter gente que medo tem. Ela não, nunca lhe fizeram mal. Nem às crianças. O marido andava pelas colónias, a trabalhar de meia, a sustentar duas famílias: a do dono da terra e o da terra sem dono.
Olha em volta, a roupa separada. Busca as bacias, duas, uma para por de molho e outra para fazer as trocas, a caixa de sabão, a escova amarela, o pau-de-bater (tem roupa mais suja que precisa), o sabão em barra, a cuia para tirar água, a velha buxa feita de um pedaço de sacola de nylon azul, que servia para esfregar as camisas de meia sem esticar. Pegou o lenço de amarrar na cabeça, para proteger do sol durante o caminho. O feijão estava quase pronto. Era só temperar com alho, sal e pimenta-do-reino, cheiro verde. Depois, juntar com a farofa de carne, por tudo numa lata de leite mococa. Estava pronta para passar a manhã no garapé.
Era Agosto, sol ardente. O capinzal deitado à vontade do vento. Tinha que atravessar o campo. O medo do gado bravo. Havia vacas recém-paridas, que, vez por outra, corriam atrás de invasores. Ela não podia correr, com a bacia de roupa na cabeça. A não ser que a largasse, mas aí, teria que pagar as roupas para o dono, então era melhor pedir a proteção de São Sebastião e ir à vida. Puxou o cordão pelo lado de fora da porta, enrolou no prego, desceu a escada e partiu.

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